talvez eu entendi primeiro com titanic, quando meu olhar se demorava nos peitos de rose e eu estudava minuciosamente o olhar de jack por cima do caderno de desenhos. lembro de desejar muito estar no lugar dele. à primeira vista parece só o despertar de um desejo por mulheres que definiria ostensivamente minha vida nos anos ainda por vir. mas não. tinha outra coisa ali. o desejo de estar no lugar dele não era só questão de poder desejar uma mulher livremente, ser alvo também do desejo dela, tinha a ver também com querer ser interessante, bonito, descolado e sensual o suficiente pra ser um namorado. mais ainda, pior ainda, ser alguém desejado pra namorar. e o que significa quando uma pessoa é desejada pra namorar? quais são as características dos interesses românticos nas histórias que mais me pegaram nesses quase trinta anos? jack dawson é um bom exemplo. ele é engraçado, bonito, gentil, malandro e safo. um cabelinho charmoso, roupas fuleiras que lhe caem muito bem. ele é amável. mas tudo isso eu sei porque é assim que rose vê jack. é assim que ele se apresenta pra ela. da vida pregressa dele, pouco importa. quem seria jack no dia a dia? se sobrevivesse ao desastre, será que ele teria bons hábitos de higiene, seria organizado? teria planos consistentes pro futuro? cuidaria bem de sua família? será que jack seria um exemplo em sua comunidade? ninguém precisa pensar nisso, jack existe numa janela de tempo tão pequena. e ele é só mais um no sem fim de interesses românticos que moldaram minha expectativa de personalidade.
se eu abro qualquer blog da minha adolescência, o número de rascunhos é grande. alguns deles muito compridos. registros de um hábito muito bem consolidado de deixar escondidas as partes mais difíceis de mim. e de achar que aquelas coisas todas que eu deixava escondidas eram tentativas de chamar atenção. e eram. em meio ao segredo e medo de exposição, eu fantasiava que um dia alguém, talvez quando eu já estivesse morta, fosse ver aquelas coisas, entender o que eu estava passando. me desculpar pelas minhas falhas. acolhê-las. o tempo me trouxe outras coisas: olho pro passado com mais carinho pela adolescente que fui. perdida e sem muita ajuda. sem nenhuma palavra, tática, técnica para pedi-la. sem uma gramática de amparo. na terapia às vezes chego na ideia de que tudo isso é resquício da minha infância, como se fosse inevitável. ainda hoje não consigo fazer o que não conseguia fazer quinze anos atrás: deixar transparecer a gravidade de minhas incapacidades. difícil declarar que não consigo comer, fazer xixi, sair da cama. parece tão idiota. habilidades que uma criança de três anos já possui. que eu, com três anos, já possuía. às vezes falo de não conseguir comer pra alguém e me deparo com uma preocupação que faz não valer a pena o partilhar. a preocupação alheia me machuca muito. me sinto incompetente. meu primeiro impulso é dizer mas não é bem assim, mas também não é pra tanto, mas isso também não quer dizer que eu sou maluca, mas não tô deprimida. me sinto pequena. me sinto insuficiente. me sinto pouco jack dawson? falando assim parece engraçado, o humor como desvio de coisas estranhas. aqui no meio fico com vontade de parar de escrever sobre isso. porque sei que o que digo também é insuficiente. que o tamanho dessa sensação é muito ostensivo, abrangente. parte muito grande de mim. a vontade de ser perfeita. não do jeito mocinha, do jeito namorado. alguém que é funcional, bonito, gentil. alguém que faz a mocinha saber que é amada do jeito que é, que a assegura. alguém que não dá problema, exceto com sua ausência; mas que, presente, dá conta das próprias necessidades e das de mais alguém.
na crise mais tenebrosa de depressão que tive, perdi doze quilos porque não conseguia comer. mesmo fazendo comida em casa e sempre que ia pra casa de alguém. isso faz sentido? como o impulso de limpar a casa toda e tomar banho e escovar os dentes quando se sabe que alguém vai chegar, mas não antes. é assim mesmo?
a coisa que não aparece. sou sombria? sôfrega? alguém que dissolve no plano de fundo. a coisa que não aparece, se uma árvore cai no meio da floresta e não tem ninguém por perto, ela faz barulho? e que diferença isso faz pra árvore?
eu não gosto de fazer barulho. na maior parte do tempo, a sensação de alguém me ver falhando é pior do que minha própria consciência constante de que estou falhando. falhando nessa coisa de ser funcional comigo. consigo mais ou menos ser uma amiga, uma esposa, uma profissional. consigo existir em relação. coadjuvando. estar só e à vontade num geral se traduz em letargia. a vontade voraz de ler, ler, ler, ler. de sair do meu corpo. assistir, assistir, assistir. olhar pro teto.