quinta-feira, 29 de maio de 2025

síndrome de interesse romântico

talvez eu entendi primeiro com titanic, quando meu olhar se demorava nos peitos de rose e eu estudava minuciosamente o olhar de jack por cima do caderno de desenhos. lembro de desejar muito estar no lugar dele. à primeira vista parece só o despertar de um desejo por mulheres que definiria ostensivamente minha vida nos anos ainda por vir. mas não. tinha outra coisa ali. o desejo de estar no lugar dele não era só questão de poder desejar uma mulher livremente, ser alvo também do desejo dela, tinha a ver também com querer ser interessante, bonito, descolado e sensual o suficiente pra ser um namorado. mais ainda, pior ainda, ser alguém desejado pra namorar. e o que significa quando uma pessoa é desejada pra namorar? quais são as características dos interesses românticos nas histórias que mais me pegaram nesses quase trinta anos? jack dawson é um bom exemplo. ele é engraçado, bonito, gentil, malandro e safo. um cabelinho charmoso, roupas fuleiras que lhe caem muito bem. ele é amável. mas tudo isso eu sei porque é assim que rose vê jack. é assim que ele se apresenta pra ela. da vida pregressa dele, pouco importa. quem seria jack no dia a dia? se sobrevivesse ao desastre, será que ele teria bons hábitos de higiene, seria organizado? teria planos consistentes pro futuro? cuidaria bem de sua família? será que jack seria um exemplo em sua comunidade? ninguém precisa pensar nisso, jack existe numa janela de tempo tão pequena. e ele é só mais um no sem fim de interesses românticos que moldaram minha expectativa de personalidade. 

se eu abro qualquer blog da minha adolescência, o número de rascunhos é grande. alguns deles muito compridos. registros de um hábito muito bem consolidado de deixar escondidas as partes mais difíceis de mim. e de achar que aquelas coisas todas que eu deixava escondidas eram tentativas de chamar atenção. e eram. em meio ao segredo e medo de exposição, eu fantasiava que um dia alguém, talvez quando eu já estivesse morta, fosse ver aquelas coisas, entender o que eu estava passando. me desculpar pelas minhas falhas. acolhê-las. o tempo me trouxe outras coisas: olho pro passado com mais carinho pela adolescente que fui. perdida e sem muita ajuda. sem nenhuma palavra, tática, técnica para pedi-la. sem uma gramática de amparo. na terapia às vezes chego na ideia de que tudo isso é resquício da minha infância, como se fosse inevitável. ainda hoje não consigo fazer o que não conseguia fazer quinze anos atrás: deixar transparecer a gravidade de minhas incapacidades. difícil declarar que não consigo comer, fazer xixi, sair da cama. parece tão idiota. habilidades que uma criança de três anos já possui. que eu, com três anos, já possuía. às vezes falo de não conseguir comer pra alguém e me deparo com uma preocupação que faz não valer a pena o partilhar. a preocupação alheia me machuca muito. me sinto incompetente. meu primeiro impulso é dizer mas não é bem assim, mas também não é pra tanto, mas isso também não quer dizer que eu sou maluca, mas não tô deprimida. me sinto pequena. me sinto insuficiente. me sinto pouco jack dawson? falando assim parece engraçado, o humor como desvio de coisas estranhas. aqui no meio fico com vontade de parar de escrever sobre isso. porque sei que o que digo também é insuficiente. que o tamanho dessa sensação é muito ostensivo, abrangente. parte muito grande de mim. a vontade de ser perfeita. não do jeito mocinha, do jeito namorado. alguém que é funcional, bonito, gentil. alguém que faz a mocinha saber que é amada do jeito que é, que a assegura. alguém que não dá problema, exceto com sua ausência; mas que, presente, dá conta das próprias necessidades e das de mais alguém. 

na crise mais tenebrosa de depressão que tive, perdi doze quilos porque não conseguia comer. mesmo fazendo comida em casa e sempre que ia pra casa de alguém. isso faz sentido? como o impulso de limpar a casa toda e tomar banho e escovar os dentes quando se sabe que alguém vai chegar, mas não antes. é assim mesmo?

a coisa que não aparece. sou sombria? sôfrega? alguém que dissolve no plano de fundo. a coisa que não aparece, se uma árvore cai no meio da floresta e não tem ninguém por perto, ela faz barulho? e que diferença isso faz pra árvore?

eu não gosto de fazer barulho. na maior parte do tempo, a sensação de alguém me ver falhando é pior do que minha própria consciência constante de que estou falhando. falhando nessa coisa de ser funcional comigo. consigo mais ou menos ser uma amiga, uma esposa, uma profissional. consigo existir em relação. coadjuvando. estar só e à vontade num geral se traduz em letargia. a vontade voraz de ler, ler, ler, ler. de sair do meu corpo. assistir, assistir, assistir. olhar pro teto.



quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

no youtube

gosto de assistir vídeos de restauração de quadros. tem algo que me acalma no ambiente de aparência estéril, as luzes brancas e brilhantes demais, os frascos com produtos químicos dissolvedores de outros produtos químicos muito mais antigos. gosto de ver a tela opaca e manchada e rasgada passar por processos meticulosos de remoção de colas, resinas e vernizes, as cores de tintas de conservação (seguramente removíveis) misturadas e aplicadas com delicadeza. me emociona muito. penso no tempo que separa o momento da restauração do momento da pintura. o que se sabia no mundo quando as cores originais foram aplicadas, antes do verniz antigo e oxidado pintar de sépia os tons alegres de azuis das roupas das moças. (não deixo o pensamento se ater demais a datas, tento deixá-lo raspar só a superfície da mente como uma pedra bem jogada raspa a superfície de um corpo d'água. treino bastante esse movimento, o de escolher a pedra do pensamento e arremessá-la com o pulso mole que deus me deu. em condições normais de temperatura e pressão, quando a mão não metafórica tenta esse feito, a pedra sempre afunda. mas pensamento é terra sem lei nem condição, então a pedra desliza e salta, desliza e salta.) nesse quadro específico, penso na moça posando para ser pintada. na minha imaginação sempre posam, nenhuma moça fruto da fantasia de nenhum artista. vislumbro a moça sóbria, risonha da castidade impressa na pintura. sentada diante do pincel, a moça levanta as saias, mas nós não vemos — o que nos oferece é um busto bem editado, falsamente pálido. imagino a moça muito satisfeita. valoriza o que vê no quadro. não pela habilidade de quem a pinta mas pela beleza dos próprios olhos castanhos. uma satisfação pensando nisso, uma moça posando e mexendo nas saias, sem medo do próprio calor. (penso muito em sexo, nem sempre de um jeito sexual. tem algo na dinâmica toda da coisa que me instiga. o que é que faz as pessoas se disporem a fazer as coisas esquisitíssimas que envolvem a experiência sexual humana média. não que eu não partilhe do ímpeto e da prática; ultimamente é muito grande meu interesse na parte prática da coisa. [tinha tanto medo de falar desse jeito quando era mais nova. bom não ter mais.] mas, enfim, é tão múltiplo. que bonito e que delícia.) na minha imaginação, a moça come sim o pintor às vezes. gosto de pensar que é uma pintora. (pra mim, jack dawson de titanic é uma sapatão. falo mais sobre isso em outra ocasião). gosto dessa dinâmica, quem posa e quem pinta. na minha cabeça, quem posa assume uma posição de confiança. confiança em quem se é, na própria cara, aquela confiança de quem sabe que é bonita mas não a ponto de achar que não é. a pintora, não. hesita. vejo quando mistura as cores e encosta a ponta do pincel na tela. com muito cuidado, muita delicadeza. o receio de não fazer jus, de falhar. uma coisa quebrada no peito, uma vontade de ser mais. quem posa não precisa ser nada. bom assim.

talvez a questão seja que. o cuidado com pintar um quadro e o cuidado com restaurar um quadro caminham juntos. o restaurador que eu gosto de acompanhar no youtube não está fazendo jus ao trabalho de quem pintou o quadro tanto quanto está fazendo jus à imagem perpétua da moça. ela não sorri, mas sinto a diversão na voz dela. tantos tempo e tanto espaço desde aquela tarde quente sentada frente ao cavalete, paquerando a pintora tímida. mostrando um joelho depois o outro, que nem em chocolate com pimenta. a imagem desse momento fulgaz eternizada em tela e óleos e pendurada em tantas paredes, transportada entre tecidos macios e embalada em plástico bolha, exposta a vento células mortas poeira fumaça de cigarro de vela gordura de pastel frito e depois enviada para um nerd que estudou a vida inteira para aquele momento. uma imagem perpétua do rosto jovem e desejado da moça venerado em tantos sentidos diferentes, em um só tempo intocável e fruível, exibida em um vídeo que se quer eterno como o olhar castanho que ela ofereceu à pintora num tempo imemorável. e tanta gente assim torcendo pela preservação daquele rosto, da maciez daquele colo, uma maciez ali impressa pela pintora apaixonada, escondida atrás da tela, que passa o pincel como quem passa os dedos. o restaurador traz um frasco cheio de bolas brancas de algodão e as gasta sem medo. nunca passa o lado sujo outra vez. eu fico impressionada. se a moça soubesse, talvez sorrisse um pouco.

síndrome de interesse romântico

talvez eu entendi primeiro com titanic, quando meu olhar se demorava nos peitos de rose e eu estudava minuciosamente o olhar de jack por cim...