quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

no youtube

gosto de assistir vídeos de restauração de quadros. tem algo que me acalma no ambiente de aparência estéril, as luzes brancas e brilhantes demais, os frascos com produtos químicos dissolvedores de outros produtos químicos muito mais antigos. gosto de ver a tela opaca e manchada e rasgada passar por processos meticulosos de remoção de colas, resinas e vernizes, as cores de tintas de conservação (seguramente removíveis) misturadas e aplicadas com delicadeza. me emociona muito. penso no tempo que separa o momento da restauração do momento da pintura. o que se sabia no mundo quando as cores originais foram aplicadas, antes do verniz antigo e oxidado pintar de sépia os tons alegres de azuis das roupas das moças. (não deixo o pensamento se ater demais a datas, tento deixá-lo raspar só a superfície da mente como uma pedra bem jogada raspa a superfície de um corpo d'água. treino bastante esse movimento, o de escolher a pedra do pensamento e arremessá-la com o pulso mole que deus me deu. em condições normais de temperatura e pressão, quando a mão não metafórica tenta esse feito, a pedra sempre afunda. mas pensamento é terra sem lei nem condição, então a pedra desliza e salta, desliza e salta.) nesse quadro específico, penso na moça posando para ser pintada. na minha imaginação sempre posam, nenhuma moça fruto da fantasia de nenhum artista. vislumbro a moça sóbria, risonha da castidade impressa na pintura. sentada diante do pincel, a moça levanta as saias, mas nós não vemos — o que nos oferece é um busto bem editado, falsamente pálido. imagino a moça muito satisfeita. valoriza o que vê no quadro. não pela habilidade de quem a pinta mas pela beleza dos próprios olhos castanhos. uma satisfação pensando nisso, uma moça posando e mexendo nas saias, sem medo do próprio calor. (penso muito em sexo, nem sempre de um jeito sexual. tem algo na dinâmica toda da coisa que me instiga. o que é que faz as pessoas se disporem a fazer as coisas esquisitíssimas que envolvem a experiência sexual humana média. não que eu não partilhe do ímpeto e da prática; ultimamente é muito grande meu interesse na parte prática da coisa. [tinha tanto medo de falar desse jeito quando era mais nova. bom não ter mais.] mas, enfim, é tão múltiplo. que bonito e que delícia.) na minha imaginação, a moça come sim o pintor às vezes. gosto de pensar que é uma pintora. (pra mim, jack dawson de titanic é uma sapatão. falo mais sobre isso em outra ocasião). gosto dessa dinâmica, quem posa e quem pinta. na minha cabeça, quem posa assume uma posição de confiança. confiança em quem se é, na própria cara, aquela confiança de quem sabe que é bonita mas não a ponto de achar que não é. a pintora, não. hesita. vejo quando mistura as cores e encosta a ponta do pincel na tela. com muito cuidado, muita delicadeza. o receio de não fazer jus, de falhar. uma coisa quebrada no peito, uma vontade de ser mais. quem posa não precisa ser nada. bom assim.

talvez a questão seja que. o cuidado com pintar um quadro e o cuidado com restaurar um quadro caminham juntos. o restaurador que eu gosto de acompanhar no youtube não está fazendo jus ao trabalho de quem pintou o quadro tanto quanto está fazendo jus à imagem perpétua da moça. ela não sorri, mas sinto a diversão na voz dela. tantos tempo e tanto espaço desde aquela tarde quente sentada frente ao cavalete, paquerando a pintora tímida. mostrando um joelho depois o outro, que nem em chocolate com pimenta. a imagem desse momento fulgaz eternizada em tela e óleos e pendurada em tantas paredes, transportada entre tecidos macios e embalada em plástico bolha, exposta a vento células mortas poeira fumaça de cigarro de vela gordura de pastel frito e depois enviada para um nerd que estudou a vida inteira para aquele momento. uma imagem perpétua do rosto jovem e desejado da moça venerado em tantos sentidos diferentes, em um só tempo intocável e fruível, exibida em um vídeo que se quer eterno como o olhar castanho que ela ofereceu à pintora num tempo imemorável. e tanta gente assim torcendo pela preservação daquele rosto, da maciez daquele colo, uma maciez ali impressa pela pintora apaixonada, escondida atrás da tela, que passa o pincel como quem passa os dedos. o restaurador traz um frasco cheio de bolas brancas de algodão e as gasta sem medo. nunca passa o lado sujo outra vez. eu fico impressionada. se a moça soubesse, talvez sorrisse um pouco.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

síndrome de interesse romântico

talvez eu entendi primeiro com titanic, quando meu olhar se demorava nos peitos de rose e eu estudava minuciosamente o olhar de jack por cim...